Ladeira do Caiapó
O horizonte das terras de Goiás é cheio de planaltos, morros e baixadas. Se alguém for compara-lo com outros lugares não é uma região montanhosa, mas nas dimensões regionais, Goiás tem suas serras. Lugares chamados de feios porque tem muita pedra, vegetação de serrado ou matos fechados, sempre de acesso muito difícil. Lugares que com certeza abrigam onças, caititus, antas e muitos outros animais. Em meio a tamanha desolação, existem pedaços de terras de cultura, de muito boa qualidade pra se plantar roças. Normalmente esses pedaços exigiam anos de trabalho na derrubada do mato, tirada de lenha e depois preparo da terra. Começa-se com uma trilha ou caminho para se alcançar o lugar e com as primeiras colheitas começa a construção até de estradas para carroça e mais tarde para carros de boi.
Assim meu avô Inácio após ter plantado as terras boas de volta de sua fazenda, de ter arrendado algumas outras mais longe, e de ter reservado um tanto outro para pastos do seu gado, ele resolveu começar uma roça no morro do Caiapó.
O morro do Caiapó não é um morrinho qualquer não, ele é até dá nome à região que chama de Serra do Caiapó. Para Goiás quando se diz serra, já tem uma magnitude especial, já é um conjunto de morros com lugares inacessíveis e muito a desvendar. Fala-se muito de serras em Goiás. Na nossa região tem a Serra do Moquém, Serra do Caiapó, Serra de Pirenópolis, Serra Branca e por aí vai.
A vida na fazenda do seu Inácio Batista, como ele era conhecido, era corrida, mas sem ser desorganizada, ele tinha controle de tudo. Era um fazendeiro rígido e muito correto, cheio de arrendos e negócios, e sempre muito respeitado. Ele tinha um gado de primeira, com muitas vacas de leite e sempre tinhas uns garrotes e novilhas para corte. Agora o maior zelo dele era com seus bois-carreiros. E por zelo agente fala de ter cuidado, tratar bem, deixar descansar entre as viagens e ter juntas extras de bois para dar conta do trabalho da fazenda. Uma coisa que faziam era a ida na cidade para comprar mantimentos e visitar parentes. Isso era uma viagem por mês. A viagem durava de dois a três dias. Saíam de madrugadinha para chegar na cidade em tempo de carregar o carro, ficavam de pouso uma noite só e já voltavam na madrugada seguinte. A ida na cidade era uma festa pros tantos filhos que tinha que quase iam junto, como também a minha avó. E tinha espaço pra mais algum vizinho que estivesse precisando de ir. Ele também sabia ser generoso. Ele escolhia duas juntas dos mais descansados e mais mansos, assim ele também teria menos trabalho para tocar o carro. Na lida da roça a coisa era mais séria e ai eles usavam 3 juntas, a junta de coice atrás, a junto do meio e a junta da guia.
No primeiro ano no Morro do Retiro, ele desmatou um bom pedaço e plantou um feijão de 3 meses. Ele arrendou o desmatamento e a queima para o Zequinha da Tiana e ele demorou demais p/tirar lenha do queimado. Ainda teve um atraso nas chuvas e ele achou melhor só plantar o feijão. O resultado foi melhor do que o esperado, a terra nova rendeu um feijão de primeira e já no primeiro ano ele teve que carrear a colheita com carro-de-boi. Ele achava que com três viagens ele tiraria tudo do morro pra ensacar.
Para descer do morro tinha uma grota muito grande e o melhor jeito foi dar uma volta grande na cabeceira da grota e isso levava o caminho por uma descida muito íngreme. Desde a primeira viagem que deram já viram que era um caminho muito perigoso. E foram três viagens mesmo nesse ano. Essa nossa história começa na terceira viagem.
O morro do Caiapó era bem longe e ficava difícil de fazer a viagem de ida e volta em um dia. Assim ele foi num dia pra chegar com tempo de carregar e voltar bem cedo no outro. A ideia era sair de volta com o sol nascendo. Quis o destino que essa última viagem fosse diferente. Ele fez algo que não era muito de costume. Como Tião, um dos carreiros que trabalhava pra ele não podia ir, ele levou os filhos que já ajudavam muito, mas foram também os menores. É aquele negócio, é a última viagem da colheita, o carro não vai muito cheio, deixa os meninos ir pra ir aprendendo e tomando gosto pelas coisas.
A enchente de São José já tinha passado pra mais de mês e as chuvas estavam ficando mais raras. Já fazia um friozinho e eles dormiram todos de baixo da mesa do carro. Acordaram cedinho e enquanto uns cangavam as 3 juntas de bois, fizeram um café pra esquentar. O sol já tinha colocado a cara pra cima do mato quando eles começaram a viagem de volta.
Saindo do roçado a estrada improvisada beirava um pedaço de cerrado grosso que não tinha sido desmatado e começava a descambar. A decida cheia de exigia cuidado e destreza no manejo dos bois. O Tião ia de lado e o seu Inácio do outro e eles conversavam entre sí, combinado o que fazer. Se o Roque, o outro carreiro estivesse junto, a conversa seria diferente e sairia até uma moda, mas o seu Inácio não era de dar muita trela não. Os 3 meninos menores iam em cima do carro os outros 2 acompanhando atrás e observando o velho Tião. Em meio a isso tudo seguia a gemido triste do eixo de aroeira contra o cocão. A aroeira é muito resistente e difícil de pegar fogo, porque numa viagem são horas de atrito e cantoria.
O cambão que também deve ser de aroeira ou jacarandá para aguentar o peso do carro carregado e a força dos bois, é a parte onde a canga dos bois é atrelada pra sustentar e arrastar o carro. Nesse ponto da descida tinha uma grota de enxurrada e o carro entrou esguiado e uma das rodas prendeu numa pedra que a água descobriu. Os bois do seu Inácio eram de muita força e obedecendo a toada do chocalho e da vara de ferrão do Tião não negaram fogo e continuaram a fazer força. Nessa hora, o cambão, por uma falta de sorte danada, se rompeu pouco à frente da junta de coice. O carro saiu do buraco e começou a descer morro abaixo. Como as juntas do meio e da guia se soltaram, só ficou a junta de coice atrelado ao pedaço do cambão e o carro. Ladeira abaixo e meio desgovernado, o carro ganhando velocidade e imbicando fora da estrada. O Tião e seu Inácio não tinha mais o que fazer, parecia que o pior estava encomendado. Os meninos pequenos continuavam ali em cima do carro sem controle.
A junta de coice naquele dia tinha os dois mais erados do seu Inácio. Era o Bonito e o Azulão. Eles foram bezerros que nasceram ali na fazenda mesmo, foram castrados e criados pelo seu Inácio e naquele dia, estavam com a missão de segurar aquele carro no morro abaixo. O danado do Azulão enterrou os joelhos no chão e começou a segurar o peso todo e o Bonito parece que vendo o parceiro ali no sofrimento acompanhou e fora segurando o carro e escorregando morro abaixo. Parece que sentiam que os filhos do velho Inácio era aquela carga preciosa que tinham que proteger a qualquer custo. Se feriram, mas escorregaram com o carro e com segurança até que ele parasse. O pesadelo durou pouco tempo, quem sabe uns 10 minutos de relógio, mas pra o seu Inácio pareceu um eito de vida.
Esses dois não trabalham mais! Disse ele. Eles salvaram meus filhos e nunca mais ninguém vai por uma canga neles. No melhor pasto da fazenda, bem do lado da casa, por muitos anos, pastaram e descansaram o Bonito e o Azulão com reconhecimento eterno de Inácio Loiola Batista.
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