Sunday, August 9, 2015

Rio Bagagem - a viagem

Rio Bagagem – A viagem

Acordei com meu pai me chamando – “Tá na hora! Tá na hora! Vamos!” Dizia ele apressado. Eram 3:00 horas de uma madrugada fria de julho e não podíamos nos atrasar. Anda logo, disse ele mais uma vez.  A voz era uma mistura de afobação e entusiasmo.  Tínhamos que nos aprontar para sair.  As coisas que levaríamos estavam todas prontas.  Foram dias e dias de preparação.  Havia chegado o momento tão esperado de sairmos para o Rio Bagagem, carinhosamente chamado de “Bagajão”. Cuidadosamente tínhamos embalado roupas, botinas e o mais importante – as espingardas e munição.  Meu pai levava sua Rossi calibre 28, e eu a minha Rossi 32 que eu havia ganhado em um Natal quando ainda tinha apenas 13 anos.  Todos os cartuchos tinham sido carregados com o cuidado de sempre.  Eu havia aprendido com ele, desde muito pequeno, a fazer tudo aquilo.  Para os cartuchos de chumbo grosso e balotes usava-se pólvora preta. Para os cartuchos de chumbo fino usávamos pólvora branca. Como bucha nos cartuchos, usávamos jornal velho. Era só rasgar um pedaço bom de jornal, cuspir na mão e fazer uma bolinha do papel para inserir no cartucho. Com o tempo e prática, eu já conseguia rasgar pedaços de jornal sempre do mesmo tamanho para fazer a bucha exatamente como precisava. A pólvora branca tinha que ser bem socada, já a preta não – ela é bem mais forte, dizia ele e se socar fica um tiro muito “brabo”. Pra terminar, nos cartuchos de chumbo grosso levavam uma camada fina de parafina na boca do cartucho.  Ela ajudava a manter os chumbos no lugar e a distinguir uns cartuchos dos outros.  Os cartuchos de chumbo grosso eram próprios para bichos, já os cartuchos de chumbo fino eram para atirar em aves.  A hora de carregar cartuchos era muito divertida, nos sentávamos na área da casa na fazenda, espalhávamos o material no banco de madeira e começava-se metodicamente o processo.  O melhor de tudo isso era a festa que o cachorro fazia. Ele nem precisava ver as espingardas, só o cheiro da pólvora já o deixava louco, ele corria entre os bancos, uivava e ia até a porteira e voltava muitas vezes.  Era claro para todos que ele queria caçar e que sabia o que estávamos fazendo, exatamente.  Era a mesma coisa quando se pegava uma espingarda. De volta a carregar os cartuchos, começava–se tirando a espoleta velha já queimada, depois era limpar o cartucho, colocar a espoleta nova, uma batidinha com o soquete de madeira para firma-la no lugar, medir a pólvora, colocar a bucha, socar bastante.  Fazia-se isso com todos os cartuchos separados para receber chumbo fino. Depois colocava se o chumbo e a última bucha. Daí os cartuchos iam para o cinturão. Depois revisava os de chumbo grosso, que eram poucos e usados somente de vez em quando. Nunca havíamos ido caçar bichos antes, só perdiz, codorna, pombas do bando, jaós e inhambus. Minha espingarda era considerada fina para caça de bichos, mas nas caçadas de aves com nosso cachorro perdigueiro eu me virava bem com ela.

Essa era a minha primeira viagem com os homens, assim diria minha mãe – com os homens. Era a maneira dela deixar claro que eu estaria entre adultos. Eu ainda menino, tinha a chance de ir caçar com meu pai e seus velhos amigos de suas aventuras.  O rio Bagagem fica no norte de Goiás, há umas boas 15 horas de viagem.  Iríamos todos em um caminhão que já estava preparado. Construíram uma grade para cobrir a carroceria com lona.  Debaixo dela iriam os mantimentos e apetrechos de cozinha, incluindo um velho fogão a gás, dois botijões, e uma canoa de 7 metros.  Ah, não posso me esquecer das latas e latas de biscoitos caseiros. Cada um dos companheiros trazia a sua especialidade – tinha biscoito de queijo, broa de milho, pipoca, quebrador, mané-pelado, roscas e muitos outros.  A carga foi organizada para permitir que todos se sentassem no meio da carroceria em bancos improvisados de madeira.  A carroceria seria coberta por uma lona e deixaríamos uma abertura para entrada e saída durante a viagem.  Havia até um pendente – uma luz ligada diretamente à bateria do caminhão – que nos permitiria iluminar o interior da carroceria.  Debaixo da lona fechada era completamente escuro. Minha mãe tinha preparado a famosa matula pra viagem.  Iriamos dividir com todos, nossa contribuição era uma farofa de frango. Me lembro ainda que tinha paçoca de carne seca, rapadura com queijo, goiabada feita em casa e outras delícias das fazendas.

Tínhamos marcado para sair às 4 da manhã da casa do seu Inhô, o motorista e dono do caminhão.  Inhô era mesmo seu apelido, seu nome era Onofre, mas ninguém o conhecia pelo nome. Ele tinha passado em nossa cada no dia anterior e carregado o caminhão.  Fomos de bicicleta até a casa dele. Chegando lá já estavam quase todos prontos e esperando.  Subimos no caminhão, eu me ajeitei em um canto com uma coberta e em poucos minutos estávamos na estrada.  Meu pai foi na frente com o motorista – iriam alternando nas tantas paradas que faríamos.  A primeira parada programada era no sitio do seu João Toco. Lá tínhamos deixado todos os cachorros que iriam com a gente.  Essa era uma viagem de caça e levávamos nove cachorros. Oito cachorros americanos, bons de trilha e caçadas longas, acostumados a correr veados, antas, capivaras e na nossa redondeza, raposas e gatos do mato. O último cachorro era o Tupã, nosso perdigueiro.  Um cachorro diferente, alegre e brincalhão, que não podia ver uma espingarda que ficava louco, corria ao redor da casa e pulava em todo mundo, parecia que caçar era o seu único interesse. Pegamos os cachorros que também iriam conosco na carroceria, em uma parte cercada que ficava na parte traseira. Nos acomodamos mais uma vez e partimos, desta vez pra valer.  A próxima parada seria há umas 3 horas depois, seria para esticar as pernas, dar um pequeno descanso para os cachorros e tomar um café feito na beira da estrada.

A viagem de ida era só animação. Eu nunca havia participado de algo assim, a animação não se comparava a nada de que eu já houvesse participado antes. E olhe que essa turma estava acostumada a se reunir seguindo várias tradições da região – pousos de folia, mutirões de trabalho para bater pasto, limpar regos d’agua, colheita de arroz e feijão e pescarias de fim de semana entre tantas outras coisas.  Estavam todos muito animados e as histórias iam surgindo uma atrás da outra. Causos folclóricos se misturavam com caçadas antigas, e a linha entre a verdade e ficção se cruzava inúmeras vezes.  E eu que pensava que dormiria na viagem.  Estes casos e estórias dariam um bom livro de contos se um dia fossem reunidos.  Ouvir essas estórias fez parte da juventude de todos aqueles homens ali reunidos e com certeza estava fazendo parte da minha também.  As viagens que eles contavam foram em carros-de-boi, carroções e até em longas caminhadas.  A minha primeira já era de caminhão. 

Retomamos a viagem e alegria continuou. Eu não sabia o que esperar da chegada no tal “Bagajão”. Nosso plano era ficar uns 10 dias acampados na beira do rio. Estávamos levando lonas para fazer barracas e coisas de cozinha. Éramos muitos e cada um teria uma tamina na chegada.  Parte da conversa na estrada era organizar a chegada para não se perder tempo. Íamos chegar de madrugada e a ideia era desembargar tudo, montar o acampamento e já sair para achar os lugares para espera de paca e capivara.

Assim chegamos ao lugar esperado. Foram umas duas horas dirigindo no mato, sem estrada certa até chegar às margens do rio.  Era um rio fundo, de águas calmas e grandes poços. As margens em muitos lugares formavam praias e enormes bancos de areia. Nosso acampamento ficava em uma dessas praias, com fácil acesso à água limpíssima de um pequeno riacho afluente e muitas árvores frondosas.  Como esperávamos a correria para montar o acampamento aconteceu. Montamos uma barraca central com a cozinha. Ela tinha até um fogão a lenha improvisado com pedras. Ao lado, fechando um meio circulo até as margens do rio ficavam as barracas de dormir. Em tudo se via os sinais de amizade e companheirismo entre os homens, as barracas de dormir estavam estrategicamente montadas demonstrando a união e a preparação para as inúmeras brincadeiras que aconteceriam. Jogar pedras nas barracas dos que roncam, encher os sapatos de areia, molhar os colchões e cobertas era sabido que aconteceria. A chegada foi tumultuada mas dentro do esperado, tudo estava pronto e os dez dias de caça estavam prontos para começar.


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