Rio Bagagem – A viagem
Acordei com meu pai me chamando – “Tá na
hora! Tá na hora! Vamos!” Dizia ele apressado. Eram 3:00 horas de uma madrugada
fria de julho e não podíamos nos atrasar. Anda logo, disse ele mais uma vez. A voz era uma mistura de afobação e
entusiasmo. Tínhamos que nos aprontar
para sair. As coisas que levaríamos
estavam todas prontas. Foram dias e dias
de preparação. Havia chegado o momento
tão esperado de sairmos para o Rio Bagagem, carinhosamente chamado de “Bagajão”.
Cuidadosamente tínhamos embalado roupas, botinas e o mais importante – as
espingardas e munição. Meu pai levava
sua Rossi calibre 28, e eu a minha Rossi 32 que eu havia ganhado em um Natal
quando ainda tinha apenas 13 anos. Todos
os cartuchos tinham sido carregados com o cuidado de sempre. Eu havia aprendido com ele, desde muito
pequeno, a fazer tudo aquilo. Para os
cartuchos de chumbo grosso e balotes usava-se pólvora preta. Para os cartuchos
de chumbo fino usávamos pólvora branca. Como bucha nos cartuchos, usávamos
jornal velho. Era só rasgar um pedaço bom de jornal, cuspir na mão e fazer uma
bolinha do papel para inserir no cartucho. Com o tempo e prática, eu já
conseguia rasgar pedaços de jornal sempre do mesmo tamanho para fazer a bucha
exatamente como precisava. A pólvora branca tinha que ser bem socada, já a
preta não – ela é bem mais forte, dizia ele e se socar fica um tiro muito
“brabo”. Pra terminar, nos cartuchos de chumbo grosso levavam uma camada fina
de parafina na boca do cartucho. Ela
ajudava a manter os chumbos no lugar e a distinguir uns cartuchos dos outros. Os cartuchos de chumbo grosso eram próprios
para bichos, já os cartuchos de chumbo fino eram para atirar em aves. A hora de carregar cartuchos era muito divertida,
nos sentávamos na área da casa na fazenda, espalhávamos o material no banco de
madeira e começava-se metodicamente o processo. O melhor de tudo isso era a festa que o cachorro
fazia. Ele nem precisava ver as espingardas, só o cheiro da pólvora já o deixava
louco, ele corria entre os bancos, uivava e ia até a porteira e voltava muitas
vezes. Era claro para todos que ele
queria caçar e que sabia o que estávamos fazendo, exatamente. Era a mesma coisa quando se pegava uma
espingarda. De volta a carregar os cartuchos, começava–se tirando a espoleta
velha já queimada, depois era limpar o cartucho, colocar a espoleta nova, uma
batidinha com o soquete de madeira para firma-la no lugar, medir a pólvora,
colocar a bucha, socar bastante. Fazia-se
isso com todos os cartuchos separados para receber chumbo fino. Depois colocava
se o chumbo e a última bucha. Daí os cartuchos iam para o cinturão. Depois
revisava os de chumbo grosso, que eram poucos e usados somente de vez em
quando. Nunca havíamos ido caçar bichos antes, só perdiz, codorna, pombas do
bando, jaós e inhambus. Minha espingarda era considerada fina para caça de
bichos, mas nas caçadas de aves com nosso cachorro perdigueiro eu me virava bem
com ela.
Essa era a minha primeira viagem com os
homens, assim diria minha mãe – com os homens. Era a maneira dela deixar claro
que eu estaria entre adultos. Eu ainda menino, tinha a chance de ir caçar com
meu pai e seus velhos amigos de suas aventuras.
O rio Bagagem fica no norte de Goiás, há umas boas 15 horas de
viagem. Iríamos todos em um caminhão que
já estava preparado. Construíram uma grade para cobrir a carroceria com
lona. Debaixo dela iriam os mantimentos e
apetrechos de cozinha, incluindo um velho fogão a gás, dois botijões, e uma
canoa de 7 metros. Ah, não posso me
esquecer das latas e latas de biscoitos caseiros. Cada um dos companheiros trazia
a sua especialidade – tinha biscoito de queijo, broa de milho, pipoca,
quebrador, mané-pelado, roscas e muitos outros.
A carga foi organizada para permitir que todos se sentassem no meio da
carroceria em bancos improvisados de madeira.
A carroceria seria coberta por uma lona e deixaríamos uma abertura para
entrada e saída durante a viagem. Havia
até um pendente – uma luz ligada diretamente à bateria do caminhão – que nos
permitiria iluminar o interior da carroceria.
Debaixo da lona fechada era completamente escuro. Minha mãe tinha
preparado a famosa matula pra viagem.
Iriamos dividir com todos, nossa contribuição era uma farofa de frango.
Me lembro ainda que tinha paçoca de carne seca, rapadura com queijo, goiabada
feita em casa e outras delícias das fazendas.
Tínhamos marcado para sair às 4 da manhã da
casa do seu Inhô, o motorista e dono do caminhão. Inhô era mesmo seu apelido, seu nome era
Onofre, mas ninguém o conhecia pelo nome. Ele tinha passado em nossa cada no
dia anterior e carregado o caminhão.
Fomos de bicicleta até a casa dele. Chegando lá já estavam quase todos
prontos e esperando. Subimos no caminhão,
eu me ajeitei em um canto com uma coberta e em poucos minutos estávamos na
estrada. Meu pai foi na frente com o
motorista – iriam alternando nas tantas paradas que faríamos. A primeira parada programada era no sitio do seu
João Toco. Lá tínhamos deixado todos os cachorros que iriam com a gente. Essa era uma viagem de caça e levávamos nove
cachorros. Oito cachorros americanos, bons de trilha e caçadas longas, acostumados
a correr veados, antas, capivaras e na nossa redondeza, raposas e gatos do
mato. O último cachorro era o Tupã, nosso perdigueiro. Um cachorro diferente, alegre e brincalhão,
que não podia ver uma espingarda que ficava louco, corria ao redor da casa e
pulava em todo mundo, parecia que caçar era o seu único interesse. Pegamos os
cachorros que também iriam conosco na carroceria, em uma parte cercada que
ficava na parte traseira. Nos acomodamos mais uma vez e partimos, desta vez pra
valer. A próxima parada seria há umas 3
horas depois, seria para esticar as pernas, dar um pequeno descanso para os
cachorros e tomar um café feito na beira da estrada.
A viagem de ida era só animação. Eu nunca
havia participado de algo assim, a animação não se comparava a nada de que eu
já houvesse participado antes. E olhe que essa turma estava acostumada a se
reunir seguindo várias tradições da região – pousos de folia, mutirões de
trabalho para bater pasto, limpar regos d’agua, colheita de arroz e feijão e pescarias
de fim de semana entre tantas outras coisas.
Estavam todos muito animados e as histórias iam surgindo uma atrás da
outra. Causos folclóricos se misturavam com caçadas antigas, e a linha entre a
verdade e ficção se cruzava inúmeras vezes.
E eu que pensava que dormiria na viagem.
Estes casos e estórias dariam um bom livro de contos se um dia fossem
reunidos. Ouvir essas estórias fez parte
da juventude de todos aqueles homens ali reunidos e com certeza estava fazendo
parte da minha também. As viagens que
eles contavam foram em carros-de-boi, carroções e até em longas
caminhadas. A minha primeira já era de
caminhão.
Retomamos a viagem e alegria continuou. Eu
não sabia o que esperar da chegada no tal “Bagajão”. Nosso plano era ficar uns
10 dias acampados na beira do rio. Estávamos levando lonas para fazer barracas
e coisas de cozinha. Éramos muitos e cada um teria uma tamina na chegada. Parte da conversa na estrada era organizar a
chegada para não se perder tempo. Íamos chegar de madrugada e a ideia era
desembargar tudo, montar o acampamento e já sair para achar os lugares para
espera de paca e capivara.
Assim chegamos ao lugar esperado. Foram
umas duas horas dirigindo no mato, sem estrada certa até chegar às margens do
rio. Era um rio fundo, de águas calmas e
grandes poços. As margens em muitos lugares formavam praias e enormes bancos de
areia. Nosso acampamento ficava em uma dessas praias, com fácil acesso à água
limpíssima de um pequeno riacho afluente e muitas árvores frondosas. Como esperávamos a correria para montar o
acampamento aconteceu. Montamos uma barraca central com a cozinha. Ela tinha
até um fogão a lenha improvisado com pedras. Ao lado, fechando um meio circulo
até as margens do rio ficavam as barracas de dormir. Em tudo se via os sinais
de amizade e companheirismo entre os homens, as barracas de dormir estavam
estrategicamente montadas demonstrando a união e a preparação para as inúmeras
brincadeiras que aconteceriam. Jogar pedras nas barracas dos que
roncam, encher os sapatos de areia, molhar os colchões e cobertas era sabido
que aconteceria. A chegada foi tumultuada mas dentro do esperado, tudo estava
pronto e os dez dias de caça estavam prontos para começar.
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