Friday, July 9, 2010

Sussuarana

Sussuarana

Já fazia um tempão danado que ninguém da redondeza ouvia notícia alguma do pessoal da fazenda que ficava do outro lado da serra. Era um espigão danado de alto que levantava desde a beira do Rio Formoso e dobrava direto rumo as cabeceiras do Ribeirão Caga-Fogo. Se alguém já foi no Ribeirão Caga-Fogo sabe muito bem o porque do nome. O córrego é infestado de Caga-fogo. Caga-fogo é uma arraínha pequeninha, do tamanho de um prato esmaltado daqueles brancos de fazenda, a danada é o bicho mais brabo que eu já vi, deitadinha na lama misturada nas folhas, e você chega perto ela falta saí da água para ferroar o caboco, e óia que quando ela pega um, bão nem precisa dizer dos pormenores, basta fala que tudo que o povo conta de ferroada de arraia é comprovado ali - tintim por tintim.

Bom, esse espigão é chamado e de Espigão do Vieira. Dizem que há muito tempo atrás um tal Zé Vieira, chegou no pé desse espigão e abriu um garimpo de ouro. O povo da redondeza fala que ele num chegô a tirá uma grama de ouro, mas o Veio Vieira passo o resto do seus dias escrafunchando praqui e pracolá. Depois que o Veio Vieira morreu apareceu uma luz no alto to espigão, assim logo depois to escurecer, que sai do alto do morro mais alto e atravessa a vazante todinha, tem dia que a danada chega a lumiá o chão que dá pra ver um grão de feijão no meio da terra. Cumpade Zeca atiça os meninos mais novo dizendo que porque o veio Vieira nunca casô, mas muita gente acredita mesmo é que o veio Vieira deixou um mundo de ouro interrado no sopé do morro indonde a luz nasce.

Do outro lado do espigão parece um paraíso. É uma terra de cultura da boa, forte, que dá o que plantá. É aí que fica a fazenda dos Bernardo Sampaio. Tanto tempo se passa sem notícias de lá que a gente inté esquece. Os Bernardo é um família inchirida, de intriga, e num dá trela pra nenhum dos vizinhos. Eles têm uns duzentos alqueire de terra, com muita água pro gado, mato virgem, e uma estrada boa que saí pro arraiá do Aruera. A última vez que eles se misturam com o resto do pessoá da redondeza foi numa novena de São Sebastião na Fazenda Contenda. Na festança fizeram um leilão e cada fazendeiro deu as prenda dum dia, era pra construir uma igreja e um grupo pra tê escolas pra mininada. Os tar dos Bernardo, fizeram um leilão de arromba na noite deles, só pra mostrar que eles não passavam precisão não. Isso já faz uns dois anos, se num fô mais. Nós nunca fomos de fazer visita, ou de trocar dia de trabalho. Na seca do ano passado, o Cumpade Zeca discuidô dos aceros das roças e veio um fogo brabo que parecia que ia queimar tudo, inté a casa do cumpadre tava perigano. Todo mundo foi correndo pra acudí o cumpade, do outro lado do espigão só veio vento brabo pra atrapalhar, dos Bernardo num veio nem um barde d’agua. Como já faz muito tempo sem notícia, a gente começa e falá isso e aquilo deles. Não é coisa boa a gente ser vizinho e fica tão apartado assim não, sempre falo que uma hora vou arriar o Rosado e dá uma volta pelas berada do Formoso para pagar uma visita e vê como andam as coisas por lá. Bom as intenções inté que são boas, mas na verdade o tempo só passa e nunca que saí de casa pra ir na fazenda dos Sampaio.

Já tinha passado a enchente de São José, que é a última enchente do ano antes de entrar a seca. Essa enchente vem sempre por volta do dia de São José, 19 de março. Nessa época a gente tem que tomar mais cuidado do gado, porque os pasto nos campos precisam de descansar para pode guentar a seca braba que vai até fim de setembro. Numa tarde dessas, eu fui buscar a vacas solteira no pasto na bera do espigão, e eu dei com uma carniça que pra mim era da roxinha, uma das meió vaca que eu tinha, e só podia ter sido a bicha. Essa onça danada já vinha comendo um bezerro aquí outro alí por muito tempo, mas nunca tinha pegado uma vaca erada, e aquela era uma das melhores vaca na fazenda. Voltei pra sede apaixonado, pensando na roxinha que com certeza tava pra dar cria. Foi uma perda de dar dó.

Eu tinha acabado de chegar em casa, tirado a botina pra descansar os calos quando ví aprumando na estrada um cavalo baio meio desconhecido. Era a dona Firmina Sampaio. Me apressei pra abrir a cancela, porque logo ví que era coisa séria. Depois de tanto tempo pra dona Firmina vir assim sozinha e num trote agalopado desse, alguma coisa ruim tinha que ter acontecido. Nem bem apeiou e já começou a conta sua agonia. O Marco Sampaio um rapazinho já mudando a fala, ai pros seus catorze ou quinze anos, tinha saído pra dá uma caçadinha de jaó no mato e num tinha vortado, O veio Bernardo foi atrás é depois de dois dias de procura ainda não tinha achado o menino. Só aí, contra a vontade do véio, que dona Firmina veio buscá ajuda. Tudo foi passando pela minha cabeça e só pensei que o menino tinha se perdido. O mato virgem de lá é feio, e de dá medo. Tens uns pedaço que nem bicho entra, é biboca feia mesmo. Mandei na mesma hora, um dos meninos dar uma carrera no cumpade Zeca e no Murilo Caldera. Eles chegaram já era de noitinha e nós arrumamos poso pra todo mundo e fomo tratando de dormir pra sair bem de madrugadinha.

Antes mesmo do galo cantar, a mulher já tinha passado um café e fritado uns ovos pra gente sair logo. Era umas quatro horas pra cruzar o espigão, como era fim das chuvas eu sabia que uns pedaços do pasto ia dar muito alto e o orvalho ia atrazar a gente um bocado. Aprumamo estrada afora e serra arriba numa marcha puxada, a veia Firmina tava mesmo apurada e num quiz ficá pra traz não, ela veio acompanhando de perto. De vez enquando eu escutava os suspiro de aflição dela um pouco pra traz de nóis. Quando nóis avistamos a sede da fazenda vimos o seu Bernardo de saída com duas trelas de cachorro e uma espingarda na cabeça do arreio. Era umas sete horas da manhã e o veio Bernardo chorava que nem um menino. Nós chegamos pronto pra procurar pelo menino perdido, mas daquela hora em diante nós descubrimos que nóis ia era caçar uma onça assassina. O veio Bernardo tinha encontrado, uns pedaços do menino, perto da pedra redonda, que era bem no meio da mata. E tudo isso só significava uma coisa, que a bicha só podia estar de filhote e por isso tava carregando as caça pra perto do espigão. Foi duro convencer o veio Bernardo a esperar eu voltar na fazenda pra buscar mais umas armas de fogo e o Lampião. Lampião era um cachorro perdigueiro danado, na trilha duma perdiz não tinha melhor, mas na hora de caçar onça o bicho é meio bobo e é o único que tem coragem de correr a danada, os outros cachorros afinam, parece até que sabe o tem adiante, e eu tinha certeza de que com o Lampião eles iam ter mais coragem.

No dia seguinte, o sol ainda não tinha apontado e nos já estávamos no pé do espigão com a cachorrada. Ia o veio Bernardo na frente de cabeça baixa, depois eu e o cumpadre Zeca, sem muito pra falar, e mais atrás Murilo Caldera, Pedo Timbó, João Lorenço e o Zé Canela mais atráz com os cachorros nas trela. Soltamos a cachorrada na vertente do Formoso, bem na entrada da mata, e eles pegaram uma trilha mata a dentro, os cachorros americanos, tem aquele uivado longo, gostoso, parece que um tira o latido e quando tá quase terminando o outro emenda. Logo ví que o bicho estava indo muito rápido e virando pro lado do rio. Viado mateiro tem mania de correr mato a baixo e atravessar o rio, é aí que ele dispista a cachorrada. Numa caçada comum eu ia correr beirando o espigão para cercar o danado, mas naquela hora eu comecei a tocar a buzina pra tirar os cachorros de idéia, a gente tava procurando uma caça diferente naquele dia, e com o barulho não podia perder muito tempo, senão não ia achar a bicha não. Apuramos o passo para entrar mata a dentro e chegar no sopé do espigão, onde tinha muita grota, e pedra de todo jeito e todo tamanho, dava uns arrepio de ver onde a gente estava entrando. Cada passo que um caboco dava era com cuidado. Se quebrasse um galhozinho subia um arrepio espinha arriba. O sol quase num chegava lá embaixo, aquilo era lugá de onça mesmo, e se o caboco topasse com ela ali ia ser um aperto. Eu ia com o dedo no gatilho da espingarda.

Por volta do meio dia, demos numa grota com água, e foi aí que eu vi primeiro sinal da danada. O rastos da bicha no fundo da grota ainda estavam enchendo d’água, e foi fácil soltar a cachorrada na trilha certa. Os cachorros do veio Bernardo pareciam que já sabiam o que tinha pela frente, os uivados já eram mais curtos e o latido do Lampeão liderava a corrida morro arriba. Nós tratamo de separar. Eu, Zeca e Murilo aprumamos pelo mato fechado, pra se a bicha fizesse uma volta ela ia vim morrer ni nós. João Lourenço, Pedo e Zé Canela, apertaram o passo para ficar sempre perto dos cachorros, porque se a bicha subir num paú, ela fica esperando de jeito e mata os cachorros um a um, se não chegar alguém logo pra segurar os bobos e lógico passar fogo na danada. O veio Bernardo, tava meio desesperado, e nem ví quando ele aprumou no rumo da pedra redonda, cortando atalho no mato fechado, ele ia rasgando o mato no peito. Ele sabia que o esconderijo da danada não era longe de onde ele tinha achado o menino. Como a bicha tava de filhote ela ia esconder o filhote e tratar de despistar os cachorros, porque o filhote não pode correr com ela e até atrapalha. Meu atino era seguir beirando o espigão até dar na pedra redonda, mas pelo mato cerrado eu ia acabar chegando muito tarde. A cachorrada já estava acuando com mais vontade, era sinal de que a bicha tinha cansado e eles já estavam chegando muito perto. A tal da pedra redonda é a morada perfeita pr’uma onça. De um lado dá pra chegar só meio de quatro pelo mato fechado, mas do outro é um despenhadeiro duns 40 metros de altura que só onça pra subir. Foi desse lado que eu cheguei junto com Zeca e o Murilo, e fui logo gritando pra ver se o veio Bernardo já tava por alí e num tivemos resposta nenhuma, os cachorros tinha terminado a toada de corrida e parecia que tavam acuando e enfrentando a bicha, era uns latidos finos e gritos e logo apareceu o primeiro com a metade do coro da cara rasgado, só podia ter sido um tapa da condenada. Nós estamos embaixo sem jeito de chegar no topo e a bagunça tava feia, eu ouvia o Lampeão latindo e gritava pro danado voltar, mais cá comigo conhecendo o danado eu sabia que ele tava de cara a cara com a danada. Os rosnados eram de fazer qualquer homem amar a espingarda, era de arrepiá. Nisso chegou o restos dos homens e começamos a subir o despenhasco, só torcendo pra não topar com a danada no meio do mato sujo. Num tinha espinho nem pedra que parasse a gente, um subia um pouco se firmava numa raiz ou qualquer coisa e pegava as espingardas e outro subia e assim nos fomos tentando chegar no topo o mais depressa possível.

O Zeca foi o primeiro que aprumou a cabeça ainda meio dependurado na berada da pedra redonda e gritou: Virge Mãe de Deus. Eu que tava uns dois passos atrás passei a espigarda já armada pra ele e ele disparou os dois canos de uma vez. O véio Bernardo tava no chão debaixo da onça todo arranhado na cara e no pescoço e a espingarda do veio ainda armada que parecia contar a historia da onça que foi mais rápida que o caçador. Ele num teve tempo de puxar o gatilho. Morreu alí, no mesmo lugar onde achou seu filho. A onça acuada não se moveu de cima da sua última caça até receber os dois balotes do Zeca no pé do ouvido. Os cachorros em volta tentando atacar e quem sabe proteger o finado Bernardo. Reunimo as coisa, o corpo do finado Bernardo, as armas, penduramo a onça num pau pra carregar e começamo a desce a tal da pedra redonda. No meio da descida encontramos o filhotinho que do oco de uma árvore assistia tudo, com certeza sem saber direito o que tava acontecendo.

Dona Firmina agora cria o filhotinho da danada dentro de casa, pois é tudo o que sobrou do marido - o finado Bernardo e do único filho, o moleque Marco Sampaio. O coro da danada tá esticado secando no paiol e ela disse que vai pregar ele na parede da sala pra nunca esquece os dois.

Alannes Moura.

Saturday, July 3, 2010

Objeto


Objeto

Sentir: Ato ou efeito de viver.
Sentir o palpitar, o ferir, o doer
Dor, uma forma especial de sentir.
Como um sentir que não causasse saudades.
Mas saudade é também um sentir.
É um sentir dobrado.
É ter vontade de ter.
É ter uma vontade extrema de ter e de ver
Sempre quando não se tem, não se vê.
Quase ao ponto de doer.
Não é nada como sentir calor
Ou frio, ou medo, sede ou fervor.
Mas é como sentir o amor
Sentir, verbo transitivo
Sempre a clamar seu objeto direto.
E aí como se explica
Que o amor faz o sentir ser completo?