Saturday, December 7, 2024

Ladeira do Caiapó

Ladeira do Caiapó

O horizonte das terras de Goiás é cheio de planaltos, morros e baixadas. Se alguém for compara-lo com outros lugares não é uma região montanhosa, mas nas dimensões regionais, Goiás tem suas serras. Lugares chamados de feios porque tem muita pedra, vegetação de serrado ou matos fechados, sempre de acesso muito difícil. Lugares que com certeza abrigam onças, caititus, antas e muitos outros animais. Em meio a tamanha desolação, existem pedaços de terras de cultura, de muito boa qualidade pra se plantar roças. Normalmente esses pedaços exigiam anos de trabalho na derrubada do mato, tirada de lenha e depois preparo da terra. Começa-se com uma trilha ou caminho para se alcançar o lugar e com as primeiras colheitas começa a construção até de estradas para carroça e mais tarde para carros de boi. 

Assim meu avô Inácio após ter plantado as terras boas de volta de sua fazenda, de ter arrendado algumas outras mais longe, e de ter reservado um tanto outro para pastos do seu gado, ele resolveu começar uma roça no morro do Caiapó. 

O morro do Caiapó não é um morrinho qualquer não, ele é até dá nome à região que chama de Serra do Caiapó. Para Goiás quando se diz serra, já tem uma magnitude especial, já é um conjunto de morros com lugares inacessíveis e muito a desvendar. Fala-se muito de serras em Goiás. Na nossa região tem a Serra do Moquém, Serra do Caiapó, Serra de Pirenópolis, Serra Branca e por aí vai.

A vida na fazenda do seu Inácio Batista, como ele era conhecido, era corrida, mas sem ser desorganizada, ele tinha controle de tudo. Era um fazendeiro rígido e muito correto, cheio de arrendos e negócios, e sempre muito respeitado. Ele tinha um gado de primeira, com muitas vacas de leite e sempre tinhas uns garrotes e novilhas para corte. Agora o maior zelo dele era com seus bois-carreiros. E por zelo agente fala de ter cuidado, tratar bem, deixar descansar entre as viagens e ter juntas extras de bois para dar conta do trabalho da fazenda.  Uma coisa que faziam era a ida na cidade para comprar mantimentos e visitar parentes.  Isso era uma viagem por mês. A viagem durava de dois a três dias.  Saíam de madrugadinha para chegar na cidade em tempo de carregar o carro, ficavam de pouso uma noite só e já voltavam na madrugada seguinte.  A ida na cidade era uma festa pros tantos filhos que tinha que quase iam junto, como também a minha avó. E tinha espaço pra mais algum vizinho que estivesse precisando de ir. Ele também sabia ser generoso.  Ele escolhia duas juntas dos mais descansados e mais mansos, assim ele também teria menos trabalho para tocar o carro. Na lida da roça a coisa era mais séria e ai eles usavam 3 juntas, a junta de coice atrás, a junto do meio e a junta da guia. 

No primeiro ano no Morro do Retiro, ele desmatou um bom pedaço e plantou um feijão de 3 meses. Ele arrendou o desmatamento e a queima para o Zequinha da Tiana e ele demorou demais p/tirar lenha do queimado. Ainda teve um atraso nas chuvas e ele achou melhor só plantar o feijão. O resultado foi melhor do que o esperado, a terra nova rendeu um feijão de primeira e já no primeiro ano ele teve que carrear a colheita com carro-de-boi. Ele achava que com três viagens ele tiraria tudo do morro pra ensacar.  

Para descer do morro tinha uma grota muito grande e o melhor jeito foi dar uma volta grande na cabeceira da grota e isso levava o caminho por uma descida muito íngreme. Desde a primeira viagem que deram já viram que era um caminho muito perigoso. E foram três viagens mesmo nesse ano. Essa nossa história começa na terceira viagem. 

O morro do Caiapó era bem longe e ficava difícil de fazer a viagem de ida e volta em um dia.  Assim ele foi num dia pra chegar com tempo de carregar e voltar bem cedo no outro.  A ideia era sair de volta com o sol nascendo. Quis o destino que essa última viagem fosse diferente.  Ele fez algo que não era muito de costume.  Como Tião, um dos carreiros que trabalhava pra ele não podia ir, ele levou os filhos que já ajudavam muito, mas foram também os menores. É aquele negócio, é a última viagem da colheita, o carro não vai muito cheio, deixa os meninos ir pra ir aprendendo e tomando gosto pelas coisas.  

A enchente de São José já tinha passado pra mais de mês e as chuvas estavam ficando mais raras. Já fazia um friozinho e eles dormiram todos de baixo da mesa do carro. Acordaram cedinho e enquanto uns cangavam as 3 juntas de bois, fizeram um café pra esquentar. O sol já tinha colocado a cara pra cima do mato quando eles começaram a viagem de volta. 

Saindo do roçado a estrada improvisada beirava um pedaço de cerrado grosso que não tinha sido desmatado e começava a descambar.  A decida cheia de exigia cuidado e destreza no manejo dos bois.  O Tião ia de lado e o seu Inácio do outro e eles conversavam entre sí, combinado o que fazer.  Se o Roque, o outro carreiro estivesse junto, a conversa seria diferente e sairia até uma moda, mas o seu Inácio não era de dar muita trela não.  Os 3 meninos menores iam em cima do carro os outros 2 acompanhando atrás e observando o velho Tião. Em meio a isso tudo seguia a gemido triste do eixo de aroeira contra o cocão.  A aroeira é muito resistente e difícil de pegar fogo, porque numa viagem são horas de atrito e cantoria. 

O cambão que também deve ser de aroeira ou jacarandá para aguentar o peso do carro carregado e a força dos bois, é a parte onde a canga dos bois é atrelada pra sustentar e arrastar o carro.  Nesse ponto da descida tinha uma grota de enxurrada e o carro entrou esguiado e uma das rodas prendeu numa pedra que a água descobriu. Os bois do seu Inácio eram de muita força e obedecendo a toada do chocalho e da vara de ferrão do Tião não negaram fogo e continuaram a fazer força.  Nessa hora, o cambão, por uma falta de sorte danada, se rompeu pouco à frente da junta de coice.  O carro saiu do buraco e começou a descer morro abaixo.  Como as juntas do meio e da guia se soltaram, só ficou a junta de coice atrelado ao pedaço do cambão e o carro. Ladeira abaixo e meio desgovernado, o carro ganhando velocidade e imbicando fora da estrada.  O Tião e seu Inácio não tinha mais o que fazer, parecia que o pior estava encomendado. Os meninos pequenos continuavam ali em cima do carro sem controle. 

A junta de coice naquele dia tinha os dois mais erados do seu Inácio.  Era o Bonito e o Azulão.  Eles foram bezerros que nasceram ali na fazenda mesmo, foram castrados e criados pelo seu Inácio e naquele dia, estavam com a missão de segurar aquele carro no morro abaixo.  O danado do Azulão enterrou os joelhos no chão e começou a segurar o peso todo e o Bonito parece que vendo o parceiro ali no sofrimento acompanhou e fora segurando o carro e escorregando morro abaixo. Parece que sentiam que os filhos do velho Inácio era aquela carga preciosa que tinham que proteger a qualquer custo. Se feriram, mas escorregaram com o carro e com segurança até que ele parasse.  O pesadelo durou pouco tempo, quem sabe uns 10 minutos de relógio, mas pra o seu Inácio pareceu um eito de vida.  

Esses dois não trabalham mais! Disse ele.  Eles salvaram meus filhos e nunca mais ninguém vai por uma canga neles.  No melhor pasto da fazenda, bem do lado da casa, por muitos anos, pastaram e descansaram o Bonito e o Azulão com reconhecimento eterno de Inácio Loiola Batista. 




Monday, May 7, 2018

As canções que fiz pra você


As canções que escrevi pra você
(releitura de Roberto Carlos “As Canções que você fez pra mim”)

Das tantas canções que escrevi para você
Te digo, continuo a canta-las todas
As palavras que usei ainda ressoam em minha alma
Você partiu e fiquei com palavras que significaram tanto
Quando as canto, é como se trouxessem de volta o verão
E sinto o calor de tê-la perto, junto a mim
E te escuto dizer o quanto me ama
Te sinto presente embora meu mundo sem você é diferente
Ouso dizer que não existe
É cheio de lágrimas e tristezas
E meu pranto persiste por não tê-la mais aqui.


The songs I wrote for you
(after Roberto Carlos song “As Canções que você fez pra mim”)

Of the songs I once wrote for you
I have to say, I still sing them
The words I used still resonate deeply in my soul.
You departed, and I am left with words that once meant the world to me.
When I sing them, it is like bringing out the sun in a winter day.
I can feel the coziness of having you close
And the warmth of your body near mine.
You are so vivid, I still hear your words in my mind
But the world without you is different
I dare say it doesn't exist almost
It is filled with tears and sadness
And the crying goes on knowing that you are no longer here.

Sunday, November 20, 2016

Uma Quarta Bem Medida

Uma Quarta Bem Medida

A data correta eu não saberia dizer, por volta de 1940 está de bom tamanho. O senhor da história é conhecido na região das Antas por ser sério e sistemático, restrito e rigoroso, justo, firme e honesto, e para alguns, orgulhoso e para todos, correto ao extremo. Daqueles que impõe medo, respeito e admiração, tudo ao mesmo tempo. Seu nome: Inácio Loiola Batista.  Muitas histórias poderiam ilustrar suas características acima, mas uma delas vem à tona como marcante do seu carácter e posição.

Um de seus vizinhos, Tibúrcio, sabendo da fartura e disponibilidade do seu Inácio, chega à sua fazenda num final de tarde em busca de uma quarta de polvilho. Apeia do cavalo e se aproxima da porta do casarão. Seu Inácio sentado no velho banco de madeira só observa, ele não diria uma palavra até o cavaleiro descer do cavalo, tirar seu chapéu e lhe dirigir um cumprimento. Não haviam crianças correndo ou gritando ao seu redor, nem cachorro latindo em volta da casa. Ali reinava sua tranquilidade. O sabiá cantava na jabuticabeira e o joão-de-barro pegava seu material na lama do curral do lado. Com isso ele não interferia, faziam parte de sua rotina.

- Taarde! Diz Tibúrcio com voz baixa e segurando o chapéu de palha com ambas as mãos.
- Boa tarde! Retruca seu Inácio, - vamos acabar de chegar. Seu Inácio não era de ficar de conversa mole, de perguntar como vai a comadre, e coisa e tal. Seu Tibúrcio sabia bem disso e foi logo ao assunto.
- Seu Inácio, vim ver se o senhor pode me vender uma quarta de polvilho.  Vamos rancar o mandiocal só depois da enchente de São de José e a muié tá precisando de um polvilho bão em casa. 
Podia-se encontrar polvilho em várias fazendas da região naquela época, mas o polvilho da fazenda do seu Inácio era conhecido. O polvilho era branco, fino e sempre puro. Não haviam ciscos ou areia, era sempre da melhor qualidade. Os biscoitos fritos cresciam como nenhum outro. Biscoitos assados, pipocas, quebradores ou pão queijo, qual fosse a receita, o resultado seria sempre o melhor possível.
- Vamos entrar. Vou mandar passar um café e já medimos seu polvilho. Sem mais conversa os dois entraram na sala do casarão e logo veio o café. Quem não conhecia seu Inácio, iria ficar imaginando como o café chegou tão rápido, assim que eles sentaram. Mas ele era assim mesmo, exigente e esperava que tudo estivesse pronto quando ele queria e sempre do seu jeito.
- Vamos até o quarto de despejo.  O senhor trouxe um saco para levar o polvilho?  Vai querer só uma quarta hoje? Disse seu Inácio ao terminar o café e já caminhando para o quarto de despejo.
O seu Tibúrcio, lhe entrega um saco branco, daqueles de açúcar alvejados com muito trabalho, e lhe diz.
- Seu Inácio, a mulher mandou esse saco prá viagem.  Vou levar só uma quarta hoje, mas quero uma quarta “bem medida”.
Seu Inácio logo pegou sua medida de quarta para medir o polvilho.  A maioria das pessoas usava uma lata de tinta ou óleo como medida de uma quarta ou vinte litros. O seu Inácio não, a quarta que ele usava era própria para medida.  Ela era de latão batido, redonda e com alças de madeira para facilitar o manuseio. Aquela quarta já tinha sinal dos anos e já tinha sido usada como medida por muitos e muitos anos, provavelmente até em armazéns ou comércios da cidade.
Seu Inácio não deu ouvido ao comentário de Tibúrcio, ele colocou a quarta na mesa de madeira, pegou um saco de polvilho da pilha que estava mais próxima, abriu e começou a encher o vasilhame antigo. Encheu até amontoar em cima e começar a derramar.  Claramente haviam uns 3 ou 4 litros a mais do que uma quarta teria.  Seu Tibúrcio observava do lado já pensando nos biscoitos a mais que sua mulher faria com o “bônus” que ele estava levando.
Seu Inácio termina de despejar o polvilho na quarta e diz:
- Alice, traz a régua.
Sua filha Alice entra rapidamente com uma régua de madeira, lhe entrega e sai como entrou. Seu Inácio passa a régua rente à boca da quarta, derrubando o excesso do polvilho sobre a mesa. A poeira fina do polvilho enche todo o ar do quarto de despejo. Seu Inácio diz em voz firme:
- Tá aí a sua quarta de polvilho bem medida. São 5 Mirréis ou 3 dias de trabalho, como o Sr. preferir.
Passado alguns dias, seu Inácio mandou um de seus filhos levar 3 litros de polvilho para a esposa do seu Tibúrcio, mas naquele dia, ele agiu como era esperado por todos: correto ao extremo.

Sunday, August 9, 2015

Rio Bagagem - a viagem

Rio Bagagem – A viagem

Acordei com meu pai me chamando – “Tá na hora! Tá na hora! Vamos!” Dizia ele apressado. Eram 3:00 horas de uma madrugada fria de julho e não podíamos nos atrasar. Anda logo, disse ele mais uma vez.  A voz era uma mistura de afobação e entusiasmo.  Tínhamos que nos aprontar para sair.  As coisas que levaríamos estavam todas prontas.  Foram dias e dias de preparação.  Havia chegado o momento tão esperado de sairmos para o Rio Bagagem, carinhosamente chamado de “Bagajão”. Cuidadosamente tínhamos embalado roupas, botinas e o mais importante – as espingardas e munição.  Meu pai levava sua Rossi calibre 28, e eu a minha Rossi 32 que eu havia ganhado em um Natal quando ainda tinha apenas 13 anos.  Todos os cartuchos tinham sido carregados com o cuidado de sempre.  Eu havia aprendido com ele, desde muito pequeno, a fazer tudo aquilo.  Para os cartuchos de chumbo grosso e balotes usava-se pólvora preta. Para os cartuchos de chumbo fino usávamos pólvora branca. Como bucha nos cartuchos, usávamos jornal velho. Era só rasgar um pedaço bom de jornal, cuspir na mão e fazer uma bolinha do papel para inserir no cartucho. Com o tempo e prática, eu já conseguia rasgar pedaços de jornal sempre do mesmo tamanho para fazer a bucha exatamente como precisava. A pólvora branca tinha que ser bem socada, já a preta não – ela é bem mais forte, dizia ele e se socar fica um tiro muito “brabo”. Pra terminar, nos cartuchos de chumbo grosso levavam uma camada fina de parafina na boca do cartucho.  Ela ajudava a manter os chumbos no lugar e a distinguir uns cartuchos dos outros.  Os cartuchos de chumbo grosso eram próprios para bichos, já os cartuchos de chumbo fino eram para atirar em aves.  A hora de carregar cartuchos era muito divertida, nos sentávamos na área da casa na fazenda, espalhávamos o material no banco de madeira e começava-se metodicamente o processo.  O melhor de tudo isso era a festa que o cachorro fazia. Ele nem precisava ver as espingardas, só o cheiro da pólvora já o deixava louco, ele corria entre os bancos, uivava e ia até a porteira e voltava muitas vezes.  Era claro para todos que ele queria caçar e que sabia o que estávamos fazendo, exatamente.  Era a mesma coisa quando se pegava uma espingarda. De volta a carregar os cartuchos, começava–se tirando a espoleta velha já queimada, depois era limpar o cartucho, colocar a espoleta nova, uma batidinha com o soquete de madeira para firma-la no lugar, medir a pólvora, colocar a bucha, socar bastante.  Fazia-se isso com todos os cartuchos separados para receber chumbo fino. Depois colocava se o chumbo e a última bucha. Daí os cartuchos iam para o cinturão. Depois revisava os de chumbo grosso, que eram poucos e usados somente de vez em quando. Nunca havíamos ido caçar bichos antes, só perdiz, codorna, pombas do bando, jaós e inhambus. Minha espingarda era considerada fina para caça de bichos, mas nas caçadas de aves com nosso cachorro perdigueiro eu me virava bem com ela.

Essa era a minha primeira viagem com os homens, assim diria minha mãe – com os homens. Era a maneira dela deixar claro que eu estaria entre adultos. Eu ainda menino, tinha a chance de ir caçar com meu pai e seus velhos amigos de suas aventuras.  O rio Bagagem fica no norte de Goiás, há umas boas 15 horas de viagem.  Iríamos todos em um caminhão que já estava preparado. Construíram uma grade para cobrir a carroceria com lona.  Debaixo dela iriam os mantimentos e apetrechos de cozinha, incluindo um velho fogão a gás, dois botijões, e uma canoa de 7 metros.  Ah, não posso me esquecer das latas e latas de biscoitos caseiros. Cada um dos companheiros trazia a sua especialidade – tinha biscoito de queijo, broa de milho, pipoca, quebrador, mané-pelado, roscas e muitos outros.  A carga foi organizada para permitir que todos se sentassem no meio da carroceria em bancos improvisados de madeira.  A carroceria seria coberta por uma lona e deixaríamos uma abertura para entrada e saída durante a viagem.  Havia até um pendente – uma luz ligada diretamente à bateria do caminhão – que nos permitiria iluminar o interior da carroceria.  Debaixo da lona fechada era completamente escuro. Minha mãe tinha preparado a famosa matula pra viagem.  Iriamos dividir com todos, nossa contribuição era uma farofa de frango. Me lembro ainda que tinha paçoca de carne seca, rapadura com queijo, goiabada feita em casa e outras delícias das fazendas.

Tínhamos marcado para sair às 4 da manhã da casa do seu Inhô, o motorista e dono do caminhão.  Inhô era mesmo seu apelido, seu nome era Onofre, mas ninguém o conhecia pelo nome. Ele tinha passado em nossa cada no dia anterior e carregado o caminhão.  Fomos de bicicleta até a casa dele. Chegando lá já estavam quase todos prontos e esperando.  Subimos no caminhão, eu me ajeitei em um canto com uma coberta e em poucos minutos estávamos na estrada.  Meu pai foi na frente com o motorista – iriam alternando nas tantas paradas que faríamos.  A primeira parada programada era no sitio do seu João Toco. Lá tínhamos deixado todos os cachorros que iriam com a gente.  Essa era uma viagem de caça e levávamos nove cachorros. Oito cachorros americanos, bons de trilha e caçadas longas, acostumados a correr veados, antas, capivaras e na nossa redondeza, raposas e gatos do mato. O último cachorro era o Tupã, nosso perdigueiro.  Um cachorro diferente, alegre e brincalhão, que não podia ver uma espingarda que ficava louco, corria ao redor da casa e pulava em todo mundo, parecia que caçar era o seu único interesse. Pegamos os cachorros que também iriam conosco na carroceria, em uma parte cercada que ficava na parte traseira. Nos acomodamos mais uma vez e partimos, desta vez pra valer.  A próxima parada seria há umas 3 horas depois, seria para esticar as pernas, dar um pequeno descanso para os cachorros e tomar um café feito na beira da estrada.

A viagem de ida era só animação. Eu nunca havia participado de algo assim, a animação não se comparava a nada de que eu já houvesse participado antes. E olhe que essa turma estava acostumada a se reunir seguindo várias tradições da região – pousos de folia, mutirões de trabalho para bater pasto, limpar regos d’agua, colheita de arroz e feijão e pescarias de fim de semana entre tantas outras coisas.  Estavam todos muito animados e as histórias iam surgindo uma atrás da outra. Causos folclóricos se misturavam com caçadas antigas, e a linha entre a verdade e ficção se cruzava inúmeras vezes.  E eu que pensava que dormiria na viagem.  Estes casos e estórias dariam um bom livro de contos se um dia fossem reunidos.  Ouvir essas estórias fez parte da juventude de todos aqueles homens ali reunidos e com certeza estava fazendo parte da minha também.  As viagens que eles contavam foram em carros-de-boi, carroções e até em longas caminhadas.  A minha primeira já era de caminhão. 

Retomamos a viagem e alegria continuou. Eu não sabia o que esperar da chegada no tal “Bagajão”. Nosso plano era ficar uns 10 dias acampados na beira do rio. Estávamos levando lonas para fazer barracas e coisas de cozinha. Éramos muitos e cada um teria uma tamina na chegada.  Parte da conversa na estrada era organizar a chegada para não se perder tempo. Íamos chegar de madrugada e a ideia era desembargar tudo, montar o acampamento e já sair para achar os lugares para espera de paca e capivara.

Assim chegamos ao lugar esperado. Foram umas duas horas dirigindo no mato, sem estrada certa até chegar às margens do rio.  Era um rio fundo, de águas calmas e grandes poços. As margens em muitos lugares formavam praias e enormes bancos de areia. Nosso acampamento ficava em uma dessas praias, com fácil acesso à água limpíssima de um pequeno riacho afluente e muitas árvores frondosas.  Como esperávamos a correria para montar o acampamento aconteceu. Montamos uma barraca central com a cozinha. Ela tinha até um fogão a lenha improvisado com pedras. Ao lado, fechando um meio circulo até as margens do rio ficavam as barracas de dormir. Em tudo se via os sinais de amizade e companheirismo entre os homens, as barracas de dormir estavam estrategicamente montadas demonstrando a união e a preparação para as inúmeras brincadeiras que aconteceriam. Jogar pedras nas barracas dos que roncam, encher os sapatos de areia, molhar os colchões e cobertas era sabido que aconteceria. A chegada foi tumultuada mas dentro do esperado, tudo estava pronto e os dez dias de caça estavam prontos para começar.


Sunday, March 8, 2015

Limites

Limites

Meus, teus ou dos outros
Não me importam os limites,
Se eles se impõem ou te libertam
Existem para serem atingidos, superados
Ou meramente ultrapassados
Ou vieram para confinar, reter, submeter
Ou bruscamente interromper

São os meus, os limites inatingíveis
ou aqueles já alcançados?
Devo passar dos limites ou respeita-los?
Devo estar dentro dos limites ou completamente fora?
Sejam eles o começo ou o fim
O impulso ou a resistência
O que sejam,

Sempre hão de atiçar minha existência.